"Loucossão", Projeto de Documentário

A doença aponta para um ideal de sociedade que não foi alcançado por um indivíduo ou um grupo: os loucos se tornam uma foto em negativo, o avesso de indivíduos que a sociedade de produção e consumo almeja, portanto, o que a sociedade prefere não ver e tem medo de nomear. 

"Loucossão: Vozes que Ouvimos sobre a Loucura"[1] é uma proposta de documentário, de Luiz Carlos Martins[2] e Rosangela Aufiero[3], sobre a reforma psiquiátrica. O corpo em que ilusoriamente se pensa que habita uma voz versus as várias vozes num mesmo corpo: locuções. LOUCOSSÃO.

Pretendemos audiovisualizar as falas da loucura e sobre a loucura, socialmente reconhecidas ou não, e sua metaforização e espelhamento no documentário. 

Buscaremos repensar as novas formas de entendimento sobre a loucura, estabelecendo uma relação desta com o preconceito, como fonte de violência e isolamento. O foco são os usuários do serviço de Saúde Mental e com as experiências de desinstitucionalização no tratamento dos portadores de sofrimento psíquico na cidade de Manaus, São Paulo e Santos, para  mostrarmos os modos de re-significação das histórias de sofrimento psíquico desses usuários, de suas famílias e amigos e com a comunidade, possibilitando novos significados para o que é loucura. 

Buscaremos evidenciar as estratégias que a população desenvolve para lidar com o adoecimento psíquico. Pretendemos que o efeito desse trabalho seja não só que o portador de sofrimento psíquico retome aquilo que viu perdido por ocasião do ensurtamento, ou seja, a palavra, a possibilidade de falar e ser ouvido; mas também que a sociedade se coloque no lugar do portador de sofrimento psíquico. Se a dialética problematiza tudo, inclusive a si mesma, insistindo na superação; e se toda experiência cognitiva inclui aquele que conhece de um modo pessoal[4], queremos que observadores e observados alternem e intercambiem seus papéis, que o objeto de observação se coloque observador de si mesmo, e que o observador se coloque no lugar do objeto de observação.

Para isso pretendemos instrumentalizar alguns portadores de sofrimento psíquico para que construam as narrativas de si mesmo, usando a equipe do documentário para representá-los. Queremos que eles nos filmem nesse processo, por acreditarmos que a busca pelo real se dá através do jogo da ilusão. Afinal aquilo que está na tela em forma de documentário não é o real e também o é, se não houvesse esse jogo permanente, não haveria a possibilidade de se estabelecer os processos de identificação e projeção. Ao mesmo tempo, com isso queremos significar audiovisualmente como os excluídos podem deixar de serem enunciados de um discurso, para tornarem-se protagonistas de seu discurso. 
A intenção é re-significar o sofrimento psíquico e sua processualidade. No caso deste trabalho, o que se quer é, enfim, desmontar a cadeia das determinações normativas, das definições científicas, das estruturas institucionais, através das quais a doença mental assumiu suas formas de existência e de expressão. Por isso, queremos falar da segregação do modo de viver, da existência que os loucos de nossa sociedade vivem, para a saúde dela própria.

As imagens e os sons que interpretamos da loucura têm a ver com o fragmento, com vozes desconexas, com sintaxe interrompida, deslogicalizada. Outra é a lógica a ser investigada: de tempo, de sintaxe, contradições, dissonâncias, conflitos, antíteses, fusões. 

Para isso, propomos dois caminhos que se interseccionam: o clichê, a estabilidade, o que é, o que deve ser desconstruído versus o que pode ser, o novo, o deslize metafórico, a instauração de uma nova ordem, a desestabilização, incômoda, provocante, inusitada, e por isso mesmo, assustadora. Queremos romper o ordinário da linguagem documentária, descontextualizá-la, reorganizá-la, instaurando um outro sentido para o que está cristalizado. Assim, as locações, os figurinos, as cores, a luz, os sons, os ruídos, todos os elementos da linguagem audiovisual se fragmentarão para se construir a aparente univocidade do discurso deste documentário.

A idéia é que o documentário seja também um corpo dessa polifonia que nos atravessa. Queremos fazer materializável as vozes da loucura. Nesta relação observador/observado, pretendemos evidenciar que um influencia o outro, ambos se transformando, num movimento de autopoiesi. 

[1]- Registrado na BN, n.439.921. Livro:825.Folha:81
[2] - Prof. Da Universidade Federal do Amazonas, dirigiu o documentário Selva na Selva.
[3] - Psicóloga, trabalha no Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro em Manaus/Am.
[4] - ROTELLI, Franco; LEONARDIS, Ota; MAURI;Diana.(1991)- Desisntitucionalização, (2ª edição), São Paulo. Ed.